Para quem, como eu, é fã incondicional e vitalícia de North and South da escritora britânica Elizabeth Gaskell (1810-1865) e ainda de Orgulho e Preconceito da também britânica Jane Austen (1775-1817), este livro é uma verdadeira benção e uma das melhores surpresas que tive nas minhas férias.
Segue um resumo da história:
"Estamos na década de cinquenta e a família de António do Couto Maia deixa Lisboa para se fixar em Moura, no Alentejo. A decisão é do chefe de família e surpreende tanto a mulher como as filhas, que não compreendem o que leva um homem de meia-idade a abandonar subitamente a sua confortável vida na capital para mergulhar num Alentejo desconhecido. É através do olhar inquiridor de Isabel, a filha mais velha, que assistimos ao conflito entre dois mundos: o da cidade, representado pelos recém-chegados, e o mundo rural, que os recebe com desconfiança. Inicialmente atraída pela beleza da vila alentejana, a jovem é confrontada com a prepotência dos senhores e com a miséria dos camponeses, num lugar onde qualquer tentativa de mudança é imediatamente esmagada. O seu sentido de justiça leva-a a colidir com Eduardo Leôncio Teles, o herdeiro da maior fortuna da região, iludindo, assim, a forte atracção que sente por ele. Ao mesmo tempo, Isabel envolve-se nos acontecimentos da vida rural, enquanto tenta descobrir o segredo que levou o pai a esconder-se no Alentejo, arrastando a família para uma existência tão difícil."
Foto Daqui retirada
Foi para mim um prazer enorme, ao ler a história, deparar-me com personagens, situações e até diálogos que me faziam recordar a obra de Gaskell ou de Austen. Sorria, pois pensava 'esta parece-me a Lady Catherine de Bourgh... ou será Hannah Thornton?'. O pai da protagonista, António do Couto Maia, é uma homenagem a Mr Hale (tirando o final trágico...) e a mãe tem um pouco de Mrs Bennet e um pouco de Mrs Hale... Eduardo Leôncio Teles é um misto delicioso de John Thornton e de Fitzwilliam Darcy e Isabel Maria do Couto Maia tem traços de Elizabeth Bennet e muito especialmente de Margareth Hale, com aquele espírito sempre inovador, crítico e combativo. Mas isto são coisas que só um bom apreciador de North and South e de Pride and Prejudice perceberá com rigor. E a esses, eu aconselho vivamente, ou melhor, obrigatoriamente, a leitura desta história.
A semelhança de determinadas personagens e do decorrer da acção com as obras acima assinaladas não é depreciativo nem sequer desanimador. É, pelo contrário, aliciante, interessante e digno de um sorriso. E, porque a acção decorre no nosso Portugal reprimido dos anos cinquenta do século passado, a história torna-se muito mais adequada à nossa realidade lusa e com recurso a locais que tão bem conhecemos (ou pelo menos ouvimos falar) e admirámos no nosso Portugal. E não faltam as palavras que só recorrendo ao dicionário reconhecemos pois fazem parte dum português antigo, sulista e ruralizado. E depois o Alentejo! O lindo Alentejo com as suas paisagens, os seus montes, os seus campos, as suas gentes.
Queria muito especialmente deixar aqui uma ressalva para os últimos capítulos que são lindos. Aquele 'look back' que qualquer apreciadora de North and South reconhece, nesta história acontece desta forma:
"No momento em que lhe passava os documentos, os seus dedos tocaram-se ao de leve, não soube se por acaso, se intencionalmente. Ela agradeceu, quase sem voz, e entrou no carro de aluguel, após o que este partiu com um ruído estrepidoso. Eduardo ficou parado à porta, fixo no vidro traseiro do automóvel, enquanto este se afastava, e nesses últimos segundos de nitidez, antes de desaparecer sob a espessa cortina da bruma matinal, avistou o rosto pálido de Isabel a relanceá-lo pela última vez."
E há também a parte que eu achei mais bonita, e para essa não consigo encontrar semelhanças em nenhuma das obras, que é quando começa a dar-se o desfecho da história e se começa finalmente a perceber porque António do Couto Maia deixou Lisboa inexplicadamente:
"As duas ficaram ali, quietas, cada uma no seu lugar, imersas num silêncio glacial. A porta ficara escancarada, da rua vinha o assobio do vento que penetrava na casa, fazia levantar as cortinas, os pratos trepidar nas paredes e os candeeiros balançar fantasmagoricamente. Quando a mãe se levantou para fechá-la, petrificou debaixo da ombreira até lhe nascerem do fundo dos pulmões gritos estridentes, a chamar pela filha, como se lhe estivessem a arrancar o coração do peito. A rapariga chegou ainda a tempo de ver dois indivíduos a empurrar António para dentro de um automóvel preto. A garrafa de vinho que trazia nas mãos caiu desamparada e estilhaçou-se contra a berma do passeio, esplhando-se o tinto na calçada cã, a mancha sanguinolenta escorrendo profusamente pelo passeio abaixo, enquanto o ruído do motor tomava o ar e lhes enchia as almas de profundo horror. Nesse instante, a mente de Isabel fechou-se a tudo o que a rodeava, um choque súbito de adrenalina percorreu-a de alto a baixo, como uma descarga eléctrica, e impulsionou-lhe as pernas para a frente, atrás do carro. O sangue fervia-lhe por baixo da pele, transformando-a num motor em combustão. O estrépido do automóvel a guinar de curva em curva não era comparado com o rugido de fúria que saía dela. A ventania cortante esbofeteava-lhe o rosto, mas ela nada sentia, só a pernas a moverem-se numa corrida desenfreada, os calcanhares a baterem violentamente contra a terra, percorrendo a estrada que cortava a vila ao meio até à orla, onde a paisagem sulcada de montes sem fim, engolia qualquer ser vivo à vista. Que podia fazer? Como poderia ela alguma vez alcança-los só com aquela explosão instantânea de força? O fôlego sumia-lhe dos pulmões e a garganta ardia-lhe de tanto se forçar a inspirar os escassos golpes de ar. Deixassem-na ao menos despedir-se. Contra a sua vontade, as pernas começaram a ceder e a velocidade da sua corrida a diminuir. O intervalo entre os arquejos era tão curto que toda a energia do corpo era insuficiente para continuar a respirar e a correr ao mesmo tempo. Por fim, tropeçou nos próprios pés e caíu redonda no chão, as lágrimas caindo-lhe em cascatas dos olhos. O automóvel galgava os montes, ficando cada vez mais distante, pequeno como uma barata, até desaparecer para lá dos limites da paisagem visível. O ruído do motor abafou-se na morrinha. Tinham-no levado. Assim, sem mais nem menos. Esqueçam-se as formalidades, os avisos, as explicações, simplesmente tinham-no detido e sequestrado, como se uma pessoa fosse um objecto de ninguém que podiam pegar e levar com eles, conforme lhes aprouvesse. A nortada fustigava-lhe o corpo fatigado, empurrava-a na direcção contrária, na direcção da casa, para onde teria de regressar de mãos vazias. Voltou costas e começou a andar. Estava a entrar na vila quando ouviu um relinchar ao longe. No topo do cabeço mais alto, recortado a contraluz, vislumbrou um cavalo e, montado nele, Eduardo. Ficou parado durante uns segundos, contemplativo, imune à borrasca, depois girou a cabeça na direcção da estrada, esticou as rédeas, deu meia volta e afastou-se a trote, desaparecendo na encosta, do outro lado do monte. Teria ele visto a cena toda desenrolar-se? Isabel praguejou, amaldiçoou-o, mandou-o às figas, importava-se lá ele, devia estar todo roído, como todos os homens rejeitados."
Além Tejo é definitivamente uma história digna de leitura, e no meu caso, de releitura pois seguramente vou voltar ao Alentejo, à Vila de Moura e à vida de Isabel e Eduardo, Inês e Pedro (não confundir com tempos monárquicos), Ana Maria e António, da dona Ercília, da Ernestina e do seu João da Mota, de Ricardo e de tantos outros personagens que tornam esta história um prazer seguro e delicioso.
O livro não é muito fácil de encontrar, infelizmente. Está à venda nas lojas Bertrand mas não em todas. Tive sorte e encontrei-o numa das lojas aqui do Porto mas isso foi só depois de as percorrer todas. Há dias, apercebi-me que já existe a versão Kindle, disponível portanto no site da amazon por cerca de 7euros (depende da taxa de câmbio, evidentemente). Segue o respectivo link para quem estiver interessado:
http://www.amazon.com/Al%C3%A9m-Tejo-Portuguese-Edition-ebook/dp/B008BIGQRE
Autor: Catarina Pereira Araújo
Data de Publicação: Setembro de 2008
Editora: Chá das Cinco
Páginas: 317
ISBN: 978-989-8032-37-9